G.R.E.S. Estação Primeira de Mangueira

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NASCE A ESTAÇÃO PRIMEIRA...

Carlos Cachaça, nascido em Mangueira, nas proximidades do morro, no dia 3 de agosto de 1902, foi testemunha da primeira vez em que os mangueirenses ouviram um samba. Até então, eles cantavam e dançavam o jongo e os lundus do folclore ou os maxixes que aprendiam nas festas da igreja da Penha, numa época em que o rádio ainda não existia (a primeira emissora brasileira, a Rádio Sociedade, surgiria em 1923). No carnaval, divertiam-se dançando nos cordões e nos ranchos.

Antes da existência do Morro de Mangueira, havia também o carnaval elegante, com bailes de máscaras realizados geralmente em hotéis. A classe média , por sua vez, aderiu imediatamente ao desfile dos carros alegóricos das grandes sociedades, dividida em torcidas a favor da Tenentes do Diabo, da Democrática e da Fenianos, as mais importantes da época, todas fundadas entre 1860 e 1870. Os pobres divertiam-se nos cordões, a primeira solução encontrada pelos foliões para brincar em grupo. Seus integrantes saíam fantasiados (mascarados, palhaços, diabos, reis, rainhas e outros), em dois tipos de cordões, o de "velhos"(todos dançavam envergados, imitando velhos) e os cucumbis, em que predominava a batucada, na base de adufos, cuícas e reco-reco. O cronista João do Rio dedicou várias páginas à descrição dos cordões.

Os ranchos carnavalescos surgiram no Rio de Janeiro em 1893, sendo o primeiro deles e o Rei de Ouro, fundado pelo baiano Hilário Jovino Ferreira, no bairro da Saúde. Em pouco tempo, os ranchos espalharam-se pela cidade, ganhando logo a preferência dos foliões pela sua música sempre lírica, pela dança e por apresentar novidades como o enredo, os instrumentos de cordas e de sopro e os personagens como a porta-estandarte e o mestre-sala, sendo estes cercados nos desfiles por meninos fantasiados conhecidos como porta-machados. O rancho mais famoso da história foi o Ameno Resedá, que contava, entre os seus admiradores, com o escritor Coelho Neto.

Desde 11 de maio de 1852, quando se inaugurou nas proximidades da Quinta da Boa Vista o primeiro telégrafo aéreo do Brasil, a elevação vizinha da Quinta era conhecida como Morro dos Telégrafos. Pouco depois, foi instalada ali perto uma indústria com o nome de Fábrica de Fernando Fraga, que produzia chapéus e que, em pouco tempo, passou a ser conhecida como "fábrica das mangueiras", já que a região era uma das principais produtoras de mangas do Rio de Janeiro. Não demorou muito para que a Fábrica de Fernando Fraga mudasse para Fábrica de Chapéus Mangueira. O novo nome era tão forte que a Central do Brasil batizou de Mangueira a estação de trem inaugurada em 1889. A elevação ao lado da linha férrea também começou a ser chamada de Mangueira, enquanto o antigo nome de Telégrafos permaneceu para identificar apenas uma parte do morro. Atualmente, Telégrafos, Pindura Saia, Santo Antônio, Chalé, Faria, Buraco Quente, Curva da Cobra, Candelária e outros são pequenos núcleos populacionais que formam o complexo do Morro de Mangueira.

O morro tinha dono. Era o visconde de Niterói (Francisco de Paula Negreiros Saião Lobato), que o recebeu como presente do imperador Pedro II. Mas ele já estava morto quando os primeiros moradores instalaram os seus barracões, e outros, mais espertos, construíam moradias para alugar, como foi o caso do português Tomás Martins. Padrinho do futuro compositor e poeta Carlos Moreira de Castro, que seria imortalizado pelo apelido de Carlos Cachaça, que aos oito anos de idade vivia no morro, aponta o padrinho como o verdadeiro fundador do Morro de Mangueira, por ter sido o primeiro a explorá-lo como local de moradia. Aos dez anos, Carlos Cachaça tinha a incumbência de assinar os recibos dos aluguéis, já que o português Tomás Martins era analfabeto.

Em 1908, a prefeitura carioca decidiu reformar a Quinta da Boa Vista e, para isso, demoliu dezenas de casinhas ali construídas por soldados que serviam no 9° Regimento de Cavalaria. Com a permissão de carregar os restos da demolição para onde bem entendessem, os militares escolheram instalar-se no Morro de Mangueira. Outro fato que serviu para aumentar a população da área foi o incêndio que, em 1916, destruiu inúmeros casebres do Morro de Santo Antônio, no centro da cidade. Surgia assim em Mangueira uma comunidade de gente pobre, constituída quase que na totalidade por negros, filhos e netos de escravos, inteiramente identificada com as manifestações culturais e religiosas que caracterizavam esse segmento social e racial. Do Natal ao Dia de Reis, em 6 de janeiro, conjuntos de pastores e pastorinhas percorriam o morro entoando as suas cantorias. Os católicos construíram uma capela a Nossa Senhora da Glória, que passou a ser a padroeira do morro. O candomblé e a umbanda tinham muitos adeptos, e alguns casebres serviam de templos, sendo o principal deles o de Tia Fé (Benedita de Oliveira), uma mineira (segundo Carlos Cachaça) ou baiana (segundo o neto Sinhozinho, presidente da Estação Primeira na década de 70), que trajava diariamente de baiana, e em cuja casa realizavam-se as grandes festas de Mangueira. Em 1935, houve uma tentativa de descendentes do visconde de Niterói de despejar os moradores do morro, mas estes foram socorridos pelo prefeito Pedro Ernesto. Uma nova tentativa, em 1964, feita por um português de sobrenome Pinheiro, que dizia ter adquirido os bens da família Saião Lobato, esbarrou num decreto do governador Carlos Lacerda, desapropriando todo o Morro de Mangueira.

OS PRIMEIROS RANCHOS DA MANGUEIRA

Segundo Carlos Cachaça, o primeiro rancho carnavalesco em Mangueira chamava-se Pérolas do Egito, criado antes de 1910, ano em que surgiram o Guerreiro da Montanha e um outro cujo nome Carlos esqueceu, mas que teria sido formado pelos moradores do alto do morro. Mais tarde, nasceu o Príncipe da Floresta, o mais famoso rancho de Mangueira, que adotou as cores verde e rosa. Sem se voltar exclusivamente para o carnaval, havia também o Grupo da Velha Guarda, um conjunto musical que, para um dos seus integrantes, teria sido fundado em 1879.

Pelo menos foi o que disse numa entrevista ao Correio da Manhã, em janeiro de 1829. Ou o entrevistado se enganou na data ou o grupo originou-se em outro local, sobrevivendo em Mangueira com a mudança dos seus integrantes para lá, pois em 1879 não havia moradores no morro. De qualquer maneira, tratava-se de um conjunto musical com uma variedade de instrumentos surpreendente, levando-se em conta a época e as condições econômicas dos mangueirenses.

O grupo tinha flauta, saxofone, bandolim, trombone, dois violões, um cavaquinho, um pandeiro e um ganzá, além de um coro feminino chamado por ele de corpo coral, a mesma expressão, por sinal, utilizada para identificar o coro dos ranchos carnavalescos. Carlos Cachaça não guardou na memória o ano em que ouviu samba pela primeira vez em Mangueira, lembrando-se apenas de que foi no tempo do Rancho Pérolas do Egito, tudo indicando, portanto, ter sido antes de 1910. Mas não se esqueceu das circunstâncias em que o fato se deu.

Quem cantou foi Elói Antenor Dias, o Mano Elói, um personagem legendário do samba carioca. Morador de Madureira, na época, Mano Elói viria a fundar mais tarde pelo menos três escolas de samba (Prazer da Serrinha, Deixa Malhar e Império Serrano). Foi ainda um respeitado pai-de-santo e, durante muitos anos, destacou-se como líder sindical dos estivadores do cais do porto. Mano Elói cantou primeiramente na casa de Tia Fé e depois para os integrantes do Pérolas do Egito. Era um samba do tipo partido alto em que se repetia o refrão e improvisavam-se versos. O refrão dizia apenas o seguinte:

O padre diz
Miseré
Misereré nobis.

Em seguida, vinham as quadras improvisadas, quase sempre relacionadas com as circunstâncias em que o samba era cantado, Carlos Cachaça lembrou-se de que, numa delas, Mano Elói brincava com a dona da casa, investindo versos como "amanhã vou na casa de Tia Fé", rimando com "vou tomar café".

Na verdade, chegava à Mangueira um tipo de música muito cantada pela comunidade negra do Rio de Janeiro, instalada em vários bairros das proximidades do centro da cidade, entre eles o Morro da Favela, o primeiro aglomerado de barracões dos morros cariocas, criado pelos ex-soldados do Exército que tinha combatido os seguidores de Antônio Conselheiro na epopéia de Canudos. Depois da batalha, os soldados foram dispensados e um grande número deles escolheu aquele morro para morar. O nome "favela" foi inspirado numa elevação existente na região da Bahia onde ocorreu o massacre dos rebeldes, e que era conhecida por Morro da Favela. A praça Onze ficava exatamente no centro dos bairros ocupados pela comunidade negra, sendo por isso o local preferido para as manifestações de canto e de dança, principalmente no carnaval.

O BERÇO DO SAMBA

A palavra samba (para o folclorista Édison Carneiro, vem de samba, que num dialeto angolano significa umbigada) servia, na linguagem popular do Rio de Janeiro da época, para identificar uma reunião musical animada por qualquer tipo de música dos negros. "Vamos a um samba", diziam. Por ser a população carioca formada por emigrantes de todo o Brasil, as músicas cantadas naquelas reuniões eram enriquecidas por contribuições de várias origens, especialmente do Nordeste e de Minas Gerais. A soma de todas as influências acabou por gerar novos ritmos que receberam o nome genérico de samba. Desses ritmos, o preferido tinha um refrão acompanhado de versos improvisados, exatamente como o samba cantado por Mano Elói em Mangueira. Sua popularidade se desvia ao ritmo contagiante, ao desafio da improvisação, como já ocorria na música nordestina, e à dança rica e bonita pela variedade de passos e pela habilidade dos dançarinos em se movimentar com graça sem levantar os pés do chão.

As reuniões musicais com samba eram muito comuns na região ocupada pela comunidade negra, merecendo maior destaque aquelas promovidas por senhoras baianas, todas conhecidas como tias. Tia Gracinda, Tia Sadata (fundadora do Rancho da Sereia), Tia Dadá, Tia Amélia (mãe do compositor) Donga - Ernesto dos Santos), Tia Presciliana de Santo Amaro (mãe do sambista João da Baiana - João Machado Guedes) eram algumas dessas tias, todas exercendo uma liderança tão forte que não seria exagero afirmar que prevalecia o matriarcado na comunidade negra. Um dos sambistas mais importantes do principio do século, Didi da Gracinha, tinha tal apelido porque era marido de Tia Gracinda. O próprio João da Baiana ficou assim conhecido por ser filho de uma baiana de prestígio.

De todas as tias, a mais famosa e a mais importante foi Tia Ciata (alguns dizem Seata; outros, Asseata e também Assiata), em cuja casa os pesquisadores asseguram ter nascido o samba carioca. Seu verdadeiro nome era Hilária Batista de Almeida, uma mulata muito bonita, que chegou ao Rio de Janeiro por volta de 1870, com 20 anos de idade. Instalada no Rio, Tia Ciata passou a ganhar a vida com um tabuleiro de quitutes baianos na rua Sete de Setembro. Ainda jovem, começou a conquistar prestígio na comunidade, chamando a atenção nas festas, em que se destacavam pela beleza e pela graça com que dançava. Casou-se com o médico negro João Batista da Silva (que chegou a ser oficial de gabinete do chefe da polícia, no tempo em que Venceslau Brás foi presidente da República) e teve 26 filhos.

O casal morou na rua Visconde de Itaúna (a casa e a rua desapareceram com a construção da avenida Presidente Vargas), ao lado da praça Onze. Era um casarão com seis quartos, duas salas e um longo corredor. No quintal, um abacateiro que vivia pelado, tantas eram as folhas arrancadas para fazer o chá que combatia a ressaca após as intermináveis festas promovidas por Tia Ciata. Era também uma líder religiosa. Em sua casa o povo negro se reunia em cultos de candomblé. Como cantar, tocar ou dançar samba em lugares públicos era proibido, os sambistas recorriam às casa religiosas para se divertir, confiando na ignorância da polícia, incapaz de distinguir sambas de músicas religiosas. Numa entrevista concedia muitos anos depois, João da Baiana contou que era comum a chegada inesperada da polícia a essas casas, sempre com o mesmo pretexto: "Recebemos a denúncia de que nesta macumba se canta samba". O preconceito, na época, contra as músicas de origem negra pode ter como exemplo a violenta reação ao fato de um violonista ter tocado, em 1914, o Corta jaca, de Chiquinha Gonzaga, numa festa realizada no palácio presidencial (o marechal Hermes era o presidente da República). Os estudantes promoveram passeatas contra o governo e, em discurso no Senado, Rui Barbosa protestou veemente, afirmando, entre outras coisas, que o Corta jaca era uma dança selvagem, "irmã do batuque, do cateretê e do samba".

Foi na casa de Tia Ciata que nasceu o Pelo telefone, de Donga e Mauro de Almeida, considerado o primeiro samba gravado (a gravação ocorreu em novembro de 1916). É verdade que, antes dele, foram gravados discos com música identificadas como sambas, mas que não o eram, assim como houve sambas genuínos registrados como se fossem outros ritmos. Mas não há dúvida de que foi a partir de Pelo telefone que o samba passou a ser reconhecido pelas gravadoras como um gênero musical. Curiosamente, o samba chegou ao disco com uma estrutura musical que nada tinha a vez com o partido alto das antigas reuniões da comunidade negra. No eram muito mais maxixes do que propriamente sambas (inclusive o Pelo telefone). Surgido no Rio de Janeiro entre 1870 e 1880, o maxixe foi o primeiro gênero musical brasileiro de caráter urbano, e rapidamente conquistou a preferência dos instrumentistas, dos compositores e do público, principalmente pela sensualidade de sua dança. Acabou por influenciar o samba a tal ponto que o chamado samba amaxixado reinou durante toda a década de 20, período em que os compositores mais destacados do gênero foram Sinhô (José Barbosa da Silva), Caninha (José Luís de Morais), José Francisco de Freitas, Eduardo Souto, o próprio Donga e tantos outros.

UM NOVO PERSONAGEM NA HISTÓRIA DO MORRO

Em 1919, mudou-se com a família para o Morro de Mangueira um menino nascido no dia 11 de outubro de 1908, no bairro do Catete, chamado Argenor de Oliveira. A família de Argenor permaneceu no Catete até ele completar sete anos de idade, quando se transferiu para o bairro vizinho de Laranjeiras, onde o menino fez algumas opções importantes para a sua formação.

O carnaval foi uma dessas opções. Por morar na vizinhança do Rancho Carnavalesco Arrepiados, passou a frequentá-lo com a família e chegou a desfilar com uma fantasia de diabo, ajudando a carregar as gambiarras que iluminavam o rancho. Em entrevista a Ronaldo Bôscoli para a revista Manchete, em novembro de 1977, Argenor lembrou aquele tempo:

"O mocróbio do samba me foi injetado pelo velho. Eu era muito garoto quando saía com toda a família no Rancho Arrepiados. E com minha voz, que era boa, cheguei à Ala do Satanás. Saímos eu, papai, que tocava cavaquinho, minha mãe e meus irmãos. A primeira vez que vesti uma fantasia, sabe lá o que é isso? Minha mãe caprichava mais comigo. Eu era o primeiro homem de sua família. Um dia, ouvi a velha dizendo para papai que não adiantava chiar, eu era o seu filho querido. Parece uma bobagem, mas isso está marcado no meu peito até hoje".

Outra opção do menino foi a de aprender a tocar violão. Contou ele ao autor destas linhas: "Meu pai tocava e eu ficava olhando para os dedos dele. Quando ele saía para trabalhar, eu pegava o violão e repetia o que ele estava fazendo. Quando saí de casa já arranhava um pouco. Passei para o cavaquinho, mas depois fiquei com o violão". Ainda em Laranjeiras, elegeu o clube do bairro, o Fluminense, como a sua grande paixão em matéria de futebol.

Com a morte do avô, que tanto ajudava no sustento da família, o pai, Sebastião Joaquim de Oliveira, decidiu mudar-se para um casebre no Morro de Mangueira, pagando um aluguel de cinco mil-réis por mês, já que, com seu modesto salário de carpinteiro, não ganhava o suficiente para manter a casa de Laranjeiras.

Argenor adaptou-se imediatamente ao morro, apesar da vida bem menos confortável do que a que levava na antiga casa. Foi obrigado a abandonar os estudos, depois de ter concluído a quarta série do curso primário, e saiu em busca de um emprego. Como filho mais velho, era hora de ajudar no sustento da família. Foi submetido a um teste para trabalhar como tipógrafo do Jornal do Brasil e, aprovado, não foi admitido por causa da idade. Acabou encontrando uma vaga numa gráfica da avenida Mem de Sá. Mas não parava num emprego.

Aos 15 anos, depois da morte de sua mãe, teve uma briga com o pai, que se mudou do Morro de Mangueira e lá o deixou sozinho, sem ter onde morar. Dormia nos trens da Central do Brasil. Conseguiu dinheiro para pagar o aluguel de um barraco no morro trabalhando como pedreiro. Como usava um chapéu do tipo coco para proteger-se do sol, seus colegas acharam que o chapéu era uma cartola e resolveram, por isso, atribuir-lhe o apelido que o imortalizou como uma das maiores figuras da música popular brasileira: Cartola.

Foi como Cartola que passou a se destacar no morro, tocando cavaquinho, fazendo os primeiros acordes no violão e compondo o seu primeiro samba, do qual nunca mais se lembrou, mas que avaliava ter sido "um boi com abóbora", utilizando a gíria dos sambistas para classificar os sambas sem nenhuma importância. Participava das rodas de samba ao lado de Zé Boleiro, Carlos Cachaça, dos irmãos Artur, Rubens, Antônio e Saturnino Gonçalves, Fiúca, Mário Nogueira e vários outros. Antes mesmo de os sambistas do morro serem descobertos pelos cantores profissionais, Mangueira já desfrutava de prestígio como um reduto de samba.

Nos últimos anos da década de 20, os sambistas de Mangueira também começavam a conquistar prestígio em outras comunidades que cultivavam o samba. Era comum a troca de visitas entre a turma do samba de Mangueira, do Estácio e da Portela (foram os compositores do Estácio que levaram o samba para o bairro de Oswaldo Cruz, onde nasceria a Escola de Samba Portela).

Curiosamente, os melhores sambistas de Mangueira não tinham vez nos blocos carnavalescos do morro por causa do seu comportamento. Faziam farras, consumiam bebidas alcoólicas, falavam palavrões e estavam sempre envolvidos em brigas. Tia Tomásia e Mestre Candinho, líderes dos maiores blocos do morro, foram os primeiros a proibir a entrada deles.

DOS ARENGUEIROS À ESTAÇÃO PRIMEIRA

Sendo assim, a única solução foi a formação de um bloco carnavalesco só para eles. A sugestão foi dada por um personagem conhecido como Zé Espinguela (Cartola e outros o chamavam de Zé Espinelli), mas que, na verdade, chamava-se José Gomes da Costa. Zé Espinguela foi muito importante na história das escolas de samba e também respeitado como pai-de-santo. Morava no subúrbio do Engenho de Dentro, mas, de acordo com Cartola, não saía de Mangueira por conta de um caso de amor que lá manteve durante longo tempo. O nome escolhido para o bloco indicava que os sambistas haviam assumido o conceito que deles faziam os dirigentes dos demais agrupamentos carnavalescos: Bloco dos Arengueiros. “Eu mesmo”, revelou Cartola em 1978 ao repórter José Carlos Rego, “fui expulso do bloco de Tia Tomásia por querer namorar várias moças ao mesmo tempo. Passei para os Arengueiros. Lá valia tudo. Os outros blocos eram muito familiares. Quem não tivesse bom comportamento durava muito pouco.

No carnaval, o bloco descia para brincar na praça Onze e aproveitava para visitar os sambistas do Estácio de Sá. Num depoimento prestado ao cineasta e pesquisador Roberto Moura, Cartola confessou que não gostava de participar das rodas de samba do Estácio, pois, por ser na rua, a polícia sempre aparecia para prender os sambistas. Preferia permanecer em Mangueira, onde os policiais não entravam com muita facilidade. “Sou do tempo que o malandro não descia/ Mas a polícia no morro também não subia”. cantou o compositor Herivelto Martins num dos seus sambas. Não há nenhuma informação sobre o ano em que foi fundado o Bloco dos Arengueiros, mas tudo indica que saiu pela primeira vez no carnaval de 1927.Depois da fundação do Deixa Falar, a expressão escola de samba adquiriu uma conotação de superioridade em relação a bloco. Cada comunidade que contava com sambistas pretendeu ter um bloco que fosse também uma escola de samba, ou seja, que, além de reunir os foliões no carnaval, também ensinasse samba. Os sambistas do Bloco dos Arengueiros já tinham prestígio suficiente para fundar uma escola de samba. Por que não criar uma no morro? A proposta foi feita e imediatamente aceita. Cartola confiava no valor dos sambistas de Mangueira, tanto que compôs um samba sugerindo que os integrantes do bloco mudassem de comportamentos e tratassem de se unir. Era assim o samba de Cartola:

Chega de demanda
Com esse time temos que ganhar
Somos a estação primeira
Salve o Morro de Mangueira

Cartola utilizou a palavra demanda no sentido em que era usada na religião umbandista. Significava conflito, disputa ou rivalidade. Dizia-se: “Fulano tem uma demanda contra Sicrano”. A expressão estação primeira também tem um significado particular. Mangueira não era a primeira estação de trem depois da D. Pedro II, como foi tantas vezes equivocadamente mencionada. A primeira era São Cristóvão. Ou Cartola usou a expressão para dizer que Mangueira era a primeira estação a ter samba ou pretendia proclamar que Mangueira era o líder - a primeira, a melhor – das estações em matéria de samba. No Rio de Janeiro a palavra estação também é empregada como sinônimo de bairro.

A união pedida por Cartola resultou na decisão de criar um bloco que fosse uma escola de samba, fundada, segundo Cartola, no dia 28 de abril de 1928, por Saturnino Gonçalves, Marcelinho José Claudino (o Maçu), Abelardo da Bolinha, Euclides Roberto dos Santos, Pedro Caim, Zé Espinguela e pelo próprio Cartola. Coube ao compositor não só batizar a escola de Estação Primeira como sugerir as cores verde e rosa, as mesmas do Rancho Arrepiados dos carnavais de sua infância. Contou o próprio Cartola num depoimento gravado em abril de 1975: “A primeira reunião da Estação Primeira foi na casa de Joana Velha, mulher de Euclides, pai de João Cocada e da Aurora, que ainda está morando no Buraco Quente. O Cocada ainda é vivo, eles já morreram. Éramos o SaintClair (Soares), marido da Aurora, o Euclides, eu, o Saturnino (Gonçalves), Marcelinho (Maçu), José Espinelli, o falecido Abelardo, Clemente e Ismar. Tem mais gente. Na primeira reunião foi escolhido o nome, que vinha do meu samba Chega de demanda. Vai chegando o carnaval, marcamos o ensaio, mas não tínhamos onde ensaiar. Existia na travessa Martins, atrás da casa de Joana Velha, se não me engano, onde morava Abelardo da Bolinha, um terreirozinho. Ele aumentou o terreno e fomos ensaiar o primeiro carnaval”.

A sede foi instalada na travessa Saião Lobato, 7, no Buraco Quente. A diretoria, por sua vez, tinha os seguintes nomes: presidente, Saturnino Gonçalves; vice-presidente, Angenor de Castro; primeiro secretário, Jorge Pereira da Silva; segundo secretário, Pedro dos Santos; tesoureiro, Francisco Ribeiro; diretor de harmonia Angenor de Oliveira; comissão de frente, Manuel Joaquim, Camilo e Narciso; comissão de bateria, Gradim, Maciste, Martins, Ismar e Lúcio. Na entrevista a José Carlos Rego, Cartola lembrou que, no primeiro carnaval depois da fundação, a escola chegou à praça Onze reunindo cerca de 60 pessoas, com um grande número de mulheres, umas vestidas de homem e outras com fantasias feitas de papel crepom. Disse ele: “A importância da Estação Primeira foi a de promover a união dos diversos blocos do morro. Passou a ser de todos. Antes, cada bloco tinha o seu dono.

Aconteciam coisas incríveis. Por volta de 1927, por exemplo, o samba do morro era dirigido por um tal Boco e a mulher dele. Uma vez, tivemos uma saída para Botafogo, a convite de um amigo desse Boco, e fomos a pé. Chegamos na casa do homem e uma senhora nos atendeu dizendo que ele não estava. Aquilo foi um choque, porque estávamos morrendo de fome. Ficamos ali parados, sem ação, decepcionados. A mulher teve pena da gente e apontou para uma caramboleira carregada de frutos, dizendo: “Quem quiser carambolas, pode pegar. Foi uma correria enorme. Todo mundo se fartou de carambolas. O pior foi que, quando voltamos para o morro, o Boco e a mulher dele desapareceram com um saco de dinheiro que havíamos recolhido”.

A GERAÇÃO DOS COMPOSITORES

A Estação Primeira teve um início de vida muito bem servida de compositores, entre eles, Cartola, Carlos Cachaça, Gradim (Lauro dos Santos), Artur Farias e Zé Com Fome (José Gonçalves). Cartola contou que esse apelido nasceu pelo hábito de ele chegar às festas e encher o interior do violão de doces e salgados.

Depois, passou a ser conhecido como Zé da Zilda, por formar uma dupla de cantores com a mulher, Zilda. Embora tenha sido um dos seus fundadores, porque, no momento da fundação, ele estava morando em outro bairro, Inhaúma, onde vivia em ardente caso de amor. A escolha de Cartola como diretor de harmonia da escola deveu-se à liberdade que exercia no morro quando o assunto era samba.

Cabia a ele também cuidar das relações com os sambistas das outras comunidades, tarefa que desempenhava com grande talento, como indica o samba que fez especialmente para receber os compositores do Estácio de Sá em visita a Mangueira:

Muito velho, pobre velho
Vem subindo a Mangueira
Com a bengala na mão
É o Estácio, velho Estácio
Vem visitar a Mangueira
E trazer recordação
Professor, chegaste a tempo
Para dizer neste momento
Como podemos vencer
Me sinto mais animado
A Mangueira a seus cuidados
Vai à cidade descer

O primeiro dos compositores mangueirenses a ter uma música gravada foi Gradim. Em setembro de 1928, a Odeon lançou um disco do cantor Benício Barbosa em que o lado A era ocupado pelo seu samba Vem, meu bem. Só em dezembro de 1930, Gradim voltaria ao disco com a gravação do samba Quá quá quá por Francisco Alves e Mário Reis. Nas duas gravações ele foi identificado pelo seu verdadeiro nome, Lauro dos Santos.

Em 1929, Cartola fez uma descoberta que mudaria a sua vida: a de que seus sambas poderiam render dinheiro. A descoberta foi feita por vias distorcidas, mas que acabaram por criar um tipo de comércio muito comum na década de 30.

Um dia, Cartola foi abordado por um vizinho chamando Clóvis, funcionário da Guarda Municipal, avisando que lá embaixo, na rua, estava o cantor Mário Reis querendo comprar um samba dele. A primeira coisa que o compositor pensou foi que o cantor estava maluco. Comprar um samba para quê ? "Ele quer samba para botar num disco", informou Clóvis. Não, Cartola jamais venderia um samba.

Vender um samba, imaginava, seria como vender o vento, o amor, a saudade. Definitivamente, não ria vender coisa alguma. Clóvis, que se apresentara a Mário Reis como primo de Cartola, tratou de convencê-lo a descer para conversar com o cantor. "" Ele pode fazer uma boa oferta", argumentou.

"Quando eu vou pedir pelo samba?", perguntou o compositor. "Quinhentos mil-réis", respondeu o falso primo. "Você é que está maluco", insistiu Cartola. "Alguém vai dar um dinheirão desses por um samba? Cinqüenta mil-réis já está muito bem pago.

"Discutiram as cifras enquanto desciam e chegaram a um acordo que a pedida deveria ser de trezentos mil-réis. Foi exatamente a quantia paga por Mário Reis pelo samba Que infeliz sorte, gravado por Francisco Alves em dezembro de 1929. Depois disso, Cartola vendeu vários sambas - "vendia apenas os direitos de gravação", esclarecia - para Francisco Alves, entre eles Divina dama, Diz qual foi o mal que te fiz e Tenho em novo amor, sendo este último gravado por Carmem Miranda.

Participou até de uma insólita venda, assim explicada numa entrevista concedida em 1974 ao autor destas linhas: "Buci Moreira tinha um samba que Francisco Alves gostava apenas da letra. A música do meu samba Na floresta se encaixava direitinho na letra de Buci. Ele comprou a minha música e colocou-a na letra de Buci. Minha letra parecia jogada fora, quando Sílvio Caldas resolveu colocar uma outra música nela e gravou. Francisco Alves reclamou, mas Sílvio convenceu-o de que ele havia comprado apenas a melodia. "Você deixou a letra de lado e o Cartola precisa ganhar dinheiro, argumentou Sílvio Caldas. Chico resolveu deixar pra lá. No ano passado, fui ver o show de Sílvio no Canecão e, quando ele me viu, me saudou assim: "Cartola é meu parceiro", e fez aquela festa". Em seu depoimento, Cartola esqueceu-se de que vendera a letra e a música para Francisco Alves.

O autor destas linhas tem em seu arquivo um documento assinado pelo compositor nos seguintes termos: "Declaro que transferi ao Sr. Francisco Alves todos os meus direitos sobre parte que me cabe na parceria que tenho com Sílvio Caldas no samba denominado Na floresta, podendo fazer com o mesmo o uso melhor lhe convier. Rio de Janeiro, 13 de setembro de 1933".

Mas, honra seja feita, todos os sambas vendidos por Cartola a Francisco Alves e a Mário Reis tiveram sempre o nome do verdadeiro autor registrado nos selos do disco, sem nenhuma parceria. Ainda a propósito de Na floresta, vale a pena lembrar que foi gravado por Sílvio Caldas no lado A de um disco que continha, no lado B, Lenço no pescoço, de Wilson e Noel Rosa.

Até 1930, os jornais cariocas, que abriam grande espaço para o noticiário carnavalesco, não deram nenhuma noticia sobre a Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira. Cartola lembrava-se de que, naquele período, houve disputas entre as primeiras escolas por iniciativa de Zé Espinguela. No depoimento a José Carlos Rego, publicado na revista da Estação Primeira no carnaval de 1978, ele narrou: "Zé Espinelli promovia muitas festas em sua casa do Engenho de Dentro. Na parte da frente da casa, era a roda de samba e, lá dentro, macumba. Nos fundos, caxambu. Me lembro que uma vez fui lá representando a Mangueira, num concurso do qual participaram Heitor dos Prazeres e Paulo da Portela. No meio da Festa Zé Espinelli sugeriu o tema beijo e fizemos os sambas dentro desse tema, que foi apresentado de surpresa".

Cartola não disse na entrevista, mas o vencedor do concurso foi Heitor dos Prazeres, que representava a Portela, então chamada de Vai Como Pode. Mas revelou que coube a Zé Espinelli ou Zé Espinguela a promoção do primeiro confronto entre as escolas de samba: "Ele arranjou com um turco da rua Senador Eusébio (mais tarde desaparecida com a construção da avenida Presidente Vargas) uma vitrine onde expôs três troféus.

No carnaval, ele subiu num pequeno palanque e as escolas desfilaram para ele. No final, deu o resultado: em primeiro, Estação Primeira; em segundo, Estácio; em terceiro,. Favela. Quando o pessoal do Estácio foi receber o seu prêmio, quebrou a taça na cabeça de Zé Espinelli. A turma do Estácio viu logo o protecionismo.

Da agressão ao Espinelli, deu-se um sururu porque fomos logo defendê-lo". Às vésperas do carnaval de 1931, a Estação Primeira começou a aparecer na imprensa, sendo chamada ora de bloco, ora de escola de samba e até de bloco co-escola de samba. O Diário Carioca, que contava com algunas dos melhores cronistas carnavalesco, chegou a publicar o roteiro da escola no carnaval daquele ano.

A Escola de Samba Estação Primeira ainda daria muito o que falar.....