Dizem que virgens que choram sangue são consideradas milagres, então posso deduzir que a filha da minha vizinha deve ser santa pois sangra de três a quatro vezes cada vez que o padrasto a toca. Ela tem 9 anos. Nenhuma igreja quis canonizá-la e ninguém acreditou nas historias dela. O medo costurou seus lábios com linhas feitas de vergonha e confusão e ela que adorava a Disney se transformou na princesa Anastácia. Seu silêncio era uma burca. Tão brutal quanto mutilação genital. Ela era Asha Haji Elmi e sua libido foi cortada centímetro por centímetro com um pedaço de caco de vidro. O bicho papão existe e morava no quarto ao lado.E cada vez que ela via seu padrasto se aproximar era Emily Davison vendo o cavalo do rei Jorge V no Derby Epson Downs. Seu voto era por castidade e ela se jogaria na frente do animal sem pensar. Cada vez que ele a tocava, seus músculos em espasmos se transformavam em um prisioneiro de Auschwitz e escreviam em sua carne: "se existir um Deus, quando eu chegar ao céu, ele terá que me pedir perdão de joelhos". Cada vez que chorava, era Hasnah Mohamed Meselmani e suas lágrimas de cristal refletiam todas as mulheres que já quiseram ser um copo de cerveja, ao perceberem que essa era a única coisa que seus parceiros seguravam com carinho. Às vezes pensava que Deus e a Morte estavam jogando baralho, pois nenhum dos dois lhe dava atenção quando ela os chamava. Jack, O Estripador teria mais compaixão. E se morrer significasse se esquecer, a paz seria uma amnésia eterna. Ela gostava de maquiagens, por isso, viu o punho do seu padrasto pintar em seu rosto sombras em tons lilás que nem Djavan imaginou quando escreveu a canção. A cor púrpura foi inspirada em seus hematomas e Alice Walker vivia em suas cicatrizes. Sua esperança era Waris Dirie e queimava em seu peito como pontas de cigarro. Ela era uma flor do deserto, cujo olhar era Abeer Qassim Hamza na frente dos 5 soldados americanos, que a transformaram numa nota de rodapé nos autos dos crimes de guerra. Ninguém perguntou, nós não falamos. Iraque devia ser seu quarto, pois nada do que aconteceu lá o mundo ficou sabendo. Suas unhas eram teboris, com elas criou verdadeiras obras de arte na tentativa de arrancar da pele o cheiro do seu padrasto. Seus sonhos, tratados como as bruxas de Salém na inquisição, queimavam como o edifício Joelma e ela sabia que havia perdido mais um pois, por dentro, queimava como fogo e por fora pingava denso como cera de vela. Ouvir sua voz era o mesmo que ver Helen Keller brincando de soletrar, sua tristeza era tão grande que era como se suas palavras fossem pingos de tinta num copo cheio de lágrimas. A mágoa diluiu tanto seu timbre de voz que suas cordas vocais tiveram que aprender a linguagem dos sinais. Mas cada vez que falava "não!" era como se Joana D'arc berrasse ao mundo a história das irmãs Mirabal no meio da Marcha das Vadias. Era o coro das Las Mariposas contra Trujilo e era Rosa Parks se recusando a se levantar dentro do ônibus Montgomery. Mas cada vez que dizia "não!" era Nisia Floresta escrevendo conselhos a minha filha. Era Madonna e Valesca Popozuda cantando sobre liberdade sexual da forma mais explícita possível e era 400 mulheres no Miss América queimando seus sutiãs. Mas, numa paz talibã, cada vez que dizia "não!" seu coração, que era Maria da Penha, se transformava em Amina, a afegã, e o apedrejamento foi inevitável. Cada tapa soava como as trancas das portas da fábrica de tecidos Cotton. Hoje, 8 de março, ela morreu sufocada. Silêncio não é consenso. Sua história se repete em outras casas, em outros corpos, em outras comunidades, em outras mulheres. Ela é a jovem indiana condenada a ser estuprada pelo crime de se apaixonar. É a garota de Nova Deli que foi violentada num ônibus e atirada dele em movimento em 2012. Ela é uma saia menor e a ideia imbecil de que o estupro é ou foi culpa dela. E ela é as vítimas da violência doméstica, cujo as queixas morrem como as mesmas; na sombra do esquecimento, em silêncio e beirando a inexistência. Entender feminismo é mais do que entender que a cada 6 minutos uma mulher é estuprada. Que a cada 18 segundos uma mulher é espancada ou que 3 em cada 4 mulheres vão ser vítimas de pelo menos um crime de violência durante toda sua vida. Entender feminismo é entender que algumas mães fazem papel de pais porquê um homem não foi homem suficiente. É entender que o termo "sexo frágil" só seria utilizado caso vasos de porcelana transassem e que a cólica da "tpm" é uma dor reflexo causada pela postura curvada que vocês ficam por muitas vezes carregarem o mundo nas costas. Entender feminismo é compreender que viemos de uma mulher. É entender a história da sua mãe. É ver que mulheres são capazes de despertar a inveja em Shiva, pois o que fazem com dois braços Shiva não faria com 100. Feminismo é entender que a vida de cada mulher é uma luta e que a história de cada uma seria capaz de ensinar para as árvores sobre o que é ser raiz. Entender feminismo é compreender que o machismo é o reflexo da insegurança do ego masculino e que impotência não é quando falhamos como homem, é quando falhamos como ser humano. Roupa jamais definiu caráter e que, onde o "não" termina, não necessariamente começa o "sim". Se Eva nasceu da costela de Adão e a costela existe pra proteger o coração, feminismo é quando entendemos que essa causa é nossa, pois fomos feitos pela mesma mão. É quando a revolução tira a maquiagem e se apresenta como veio ao mundo: linda! E é quando entendemos que, se gerar vida é um dom divino e toda mulher é capaz de ser mãe, podemos deduzir que putas e freiras podem ser santas, afinal, aquelas que não derem a luz com seu ventre certamente o farão com seu coração.
Compositor: Marcello de Souza Dolme (Marcello Gugu) ECAD: Obra #29207056 Fonograma #5745311