A morte chegou pelo interurbano em longas espirais metálicas. Era de madrugada. Ouvi a voz de minha mãe, viúva. De repente não tinha pai. No escuro de minha casa em Los Angeles procurei recompor tua lembrança Depois de tanta ausência. Fragmentos da infância Boiaram do mar de minhas lágrimas. Vi-me eu menino Correndo ao teu encontro. Na ilha noturna Tinham-se apenas acendido os lampiões a gás, e a clarineta De Augusto geralmente procrastinava a tarde. Era belo esperar-te, cidadão. O bondinho Rangia nos trilhos a muitas praias de distância Dizíamos: "E-vem meu pai!" Quando a curva Se acendia de luzes semoventes, ah, corríamos Corríamos ao teu encontro. A grande coisa era chegar antes Mas ser marraio em teus braços, sentir por último Os doces espinhos da tua barba. Trazias de então uma expressão indizível de fidelidade e paciência Teu rosto tinha os sulcos fundamentais da doçura De quem se deixou ser. Teus ombros possantes Se curvavam como ao peso da enorme poesia Que não realizaste. O barbante cortava teus dedos Pesados de mil embrulhos: carne, pão, utensílios Para o cotidiano (e freqüentemente o binóculo Que vivias comprando e com que te deixavas horas inteiras Mirando o mar). Dize-me, meu pai Que viste tantos anos através do teu óculo-de-alcance Que nunca revelaste a ninguém? Vencias o percurso entre a amendoeira e a casa como o atleta exausto no último lance da maratona. Te grimpávamos. Eras penca de filho. Jamais Uma palavra dura, um rosnar paterno. Entravas a casa humilde A um gesto do mar. A noite se fechava Sobre o grupo familial como uma grande porta espessa.
Compositor: Marcus Vinicius da Cruz de Mello Moraes (Vinicius de Moraes) (UBC)Publicado em 2003 (03/Set) e lançado em 1977 (01/Fev)ECAD verificado obra #127866 e fonograma #594992 em 01/Abr/2024 com dados da UBEM