Pede licença o tropeiro Nada mais que um payador Curandeiro e domador Do reduto missioneiro E além disso curandeiro Da vivencia campesina Maestros da medicina Aqui nas pampas gaudérias Nós ensinamos matérias Que a cátedra não ensina.
Nessa vida de rigor A gente fica mais rude Sem proteção a saúde Nem remédios contra dor Aqui não tem medidor Para pressão arterial Aqui não tem hospital Nem sala de cirurgia O galpão é a sacristia E o bloco ambulatorial.
Foi assim, desde o início Da nossa gesta campeira Quando fizemos fronteira No velho solo patrício Peliando meio por vicio No lombo da sesmaria A canha era anestesia Fazendo pátria a trompadas E aprendendo nas carneadas As noções de anatomia.
Verão, primavera, inverno Ali não faz diferença Para curar qualquer doença Cada gaúcho é um interno Quem vive naquele inferno Não se assusta nem se acanha Nas urgências de campanha É rápida a cirurgia E se estanca uma sangria Com terra e teia de aranha. O braço, a perna quebrada Todo e qualquer acidente Se atende imediatamente Sem anestesiar a indiada Faca sempre bem afiada E a segurança na cura Talho grande se costura Sem alteração nem teima E quando um cristão se queima Se mija na queimadura
Remédios, não tem mistério Na zona do pastoreio Aprendemos num rodeio A lidar com causo sério Naquele ambiente gaudério De horizonte e campo nu Qualquer domador xiru É mestre numa sutura Com tentos de couro cru
Existe, claro, exceções Os magos das venzeduras Que as vezes realizam curas Conjujos com orações Ao tratar de corações Não vão atrás de magia Ali o índio se arrepia A não ser que seja louco Porque reza vale pouco Se o caso é cardiologia
Uma mal estar, a tonteira Falta de ar, taque cardía De vereda se alivia Dando um chá de laranjeira De cidró, de erva cidreira Temos um estoque farto O tiro, a facada, o parto Isso qualquer um medica Mas a coisa se complica Com derrame, angina, infarte.
A morte não manda aviso E chega sempre certeira Não perde pulo a traiçoeira No seu ataque preciso Me lembro neste improviso Que até passei um vexame Uma situação infame Que compreender não distingo Uma vez matei um gringo Para o salvar de um derrame
Pois o meu atendimento Para salvá-lo da morte Com sangria, no momento O mandei sem sacramento Para a última viajada Tenho a mão meio pesada Se viu, depois no exame E o gringo em vez do derrame Veio a morrer da facada.
Eu, que ajo por instinto Talvez pelo atavismo Nesse meu primitivismo Lá no meu interior, sinto Que o coração é distinto Isso qualquer um descobre Coração é um órgão nobre O músculo mais perfeito Que bate do mesmo jeito No rico como no pobre.
Ele é o relógio da vida Que ao bater das pulsações Marca nossas sensações Na estrada larga e comprida Com duração definida É o que nós chamamos, sina Mas que um dia se termina Por longe que a gente vá E as vezes a gente o dá O meu eu dei pra uma china
E tive minha experiência Depois que vim pra cidade Causo sério de verdade Quase me rouba a existência Com toda minha experiência De curandeiro primário Um problema coronário Do filho da Boçoroca Por pouco que não convoca Meu agente funerário.
Levado a um pronto socorro Ao qual tenho restrições E que não tem condições Nem de atender um cachorro Não sei como que não morro Maestros da medicina Tenho provas que o incrimina E me diga por palpite Confundindo com gastrite Um infarto pós angina
Seis horas ali, penando Trancado naquele brete Com doses de tagamete Que eles iam me injetando Compreendi que ali ficando Meu destino ia ser bruto Me mandei pra um instituto Do coração, e aqui estou Meus amigos, se não vo Deixava a china, de luto.
Que lindo entender da lida Como esses homens entende É até milagre que emende Uma linha já rompida Fazendo voltar a vida A chama que se termina Isso é Deus que determina Só de lembrar me comovo E assim, eu nasci de novo No efeito da eparina
Nunca é bom esse namoro Da morte que nos acosta E nem milagre que possa Salvar o índio mais touro Mas me livraram o couro Como quem benze uma íngua Já ia morrendo a míngua O payador do Brasil Isordil, mais isordil Plantado embaixo da língua.
Depois, o cateterismo Uma espada na virilha Do payador farroupilha Dentro do seu fatalismo Em completo imobilismo Preparado de antemão Vendo na televisão Uma tela esbranquiçada Aquela cinta prateada No rumo do coração.
Vendo o estrago causado Por cada infarto traiçoeiro No coração missioneiro Totalmente esburacado Destruído e necrosado Num jeito que dava pena Ali, o índio se apequena Ante a fraqueza da vida E eu fui levado em seguida Para as pontes de safena.
Me serraram pelo meio Ali no osso do peito Não vi nada, mas suspeito Porque me encontrava alheio Mas, sai bem, já lo creio Que a cautela não é pouca A ciência é uma cousa louca Eu não sei por onde andei Até que ao fim me acordei Com um tubo, enfiado na boca.
Não é brinquedo, so franco Ouvia mas não falava De um grupo que me cercava Todo vestido de branco É pior que juro de banco A sensação que senti Me encontrava na UTI Me dei conta no momento Meu primeiro pensamento Era me mandar dali.
Mas esse é um caso pessoal Me perdoem o excesso Se nesse tema eu ingresso Sem ser um profissional Mas é uma lição geral Do payador do rincão Se o corpo humano é a nação Com vida circulatória Pra mim que conheço a história O Rio Grande é o coração.
Porque desde que broto Foi ponto de referência Controlador da freqüência Do coração que pulso Ventrículo que mando O sangue puro, filtrado Ao pulmão, pátrio sagrado Ligando veias artérias Guardiões da estirpe da Ibéria Do primeiro antepassado.
No passado foi assim Gravamos nossos ditames Com ameaças de derrames E de infartos, que por fim Curamos neste confim Onde crescemos peliando De sentinela guardando Como pastor e guerreiro O coração brasileiro Pra que seguisse pulsando.
Infelizmente, hoje em dia Periga nossa estandarte O perigo de um infarte Em nossa soberania Exige uma cirurgia Muito urgente no instante O nosso país gigante Minado de obstruções Por um grupo de ladrões Está a pedir um transplante.
O sistema vascular Totalmente obstruído Cérebro comprometido Que já nem pode pensar Sem comer, sem respirar Quando vejo me comovo Precisa um coração novo Aquele que a gente sonha Que bata com mais vergonha E tenha respeito ao povo.
O que fazer desse doente? Maestros, eu vos pergunto No bárbaro contrabuto Do garrão do continente Tendo em vista que o paciente Perdeu a soberania Já não tem democracia Mas a dúvida persiste Será que o doente resiste Ao menos a anestesia.
Pra mim, como curandeiro De um rancho da redução Já cheguei a conclusão Que o problema brasileiro Não é falta de dinheiro Mas muito pelo contrário É problema coronário A crise dos três poderes Que esquecendo dos deveres Se fartaram de salário.
A terra continentina Precisa nova confiança Contra o conchavo que avança Em nossa pátria divina E o payador se ilumina No poder do pensamento Imaginando um invento Que alcance logo sucesso E se consiga um congresso Que respeite o orçamento.
O povo é mesmo que tropa No rumo do matador O eterno sofredor Que o próprio regime entopa Carnaval, novela, copa Minha alma se compadece E eu a mim se me parece Que uma grande lição fica Quanto mais se sacrifica Mais o meu povo se empobrece
Se eu faço essa confissão Aqui da terra farrapa Se me arrancarem do mapa Fica um buraco no chão Porque eu calcei o garrão Pra um tiro de volta e meia Não me assusta cara feia Tão pouco falta vergonha E duvido que alguém ponha Uma idéia na cadeia.