Em um momento em que fantasmas de monstros de um passado sombrio da humanidade estão reaparecendo é preciso, de fato, parar e refletir. Ainda mais quando os acontecimentos se dão durante uma pandemia que está remodelando o mundo. Nos Estados Unidos violentos protestos estouraram pelo país depois que George Floyd, um homem foi morto asfixiado por um policial branco em Mineápolis. Apesar do sentimento de revolta, também entendeu-se que o momento pedia também por serenidade.
Daí a ação que pediu por um "apagão" nesta terça-feira ter dado tanto resultado mundo afora. Afinal os problemas raciais não estão limitados aos EUA, longe disso, e essa é uma questão que precisa ser sempre enfrentada e combatida. Nesse especial selecionamos quatro artistas que usaram de sua voz para trazer mais conscientização sobre esse problema e outros igualmente fortes.
Miles Davis - 1926 - 1991
Forte candidato a mais importante músico do século 20, Miles Davis foi responsável por revoluções profundas no jazz e além, "Kind of Blue" de 1959 é tido como um dos melhores, se não o melhor, álbum de jazz da história. Ele ainda eletrificaria o estilo e o aproximaria de gêneros como o rock e o funk.
Apesar de ter nascido em uma família bem estabelecida, Davis sofreu com o racismo e o preconceito lhe deixou marcas profundas - sua persona misteriosa e desconfiada era uma defesa natural contra esses abusos que ele acabou desenvolvendo. Diferentemente de muitos artistas que sofreram com o racismo somente antes da fama, Davis passou por uma de suas maiores humilhações quando já era um dos mais conceituados trompetistas do planeta. Foi em 1959 quando ele levava uma mulher branca até um táxi e um policial lhe mandou "sair andando". Miles não estava disposto a abaixar a cabeça e peitou o oficial.
O músico não só foi ferido pelo como acabou sendo preso, ainda que liberado depois de pagar fiança. Em entrevistas ele disse que esse foi um momento crucial em sua vida, deixando-o mais amargo e cínico em um momento em que ele começava a acreditar que a América estava de fato mudando.
A questão racial influenciaria boa parte de sua produção posterior, especialmente na primeira metade dos anos 70, quando ele gravou discos como o radical "On The Corner", marcados por ritmos pesados e linhas repetitivas fortemente influenciadas pelo funk.
Nina Simone 1933 - 2003
Irriquieta, polêmica e inegavelmente brilhante, Nina Simone foi uma daquelas artistas que nunca se encaixaram em rótulos. Para alguns ela era um cantora de jazz, enquanto outros a enxergavam como uma artista de soul e R&B. O fato é que ela conseguia adaptar qualquer canção à sua voz e dar a ela um toque único, fosse um standard da música americana ou um hit da música pop.
Simone também sofria de bipolaridade, algo que lhe causou muitos problemas, e era uma mulher que não se calava em frente aos problemas dos EUA, especialmente os que envolviam questões raciais - ela contava que, na juventude, foi rejeitada no conceituado Curtis Institute of Music única e exclusivamente por ser negra, já que tinha feito uma audição excelente.
A cantora mostrou sua faceta mais politizada em uma época quando canções sobre o racismo eram raras. "Mississippi Goddam" de 1964 lidava de forma crua e direta com o problema. Simone a escreveu motivada pela explosão criminosa a uma igreja que matou quatro crianças negras e deixou uma quinta cega. O compacto foi boicotado por emissoras de rádios do sul dos EUA e, como esperado, desagradou muita gente. Ao mesmo tempo, ele tornou Nina um símbolo pela luta a favor da igualdade racial.
Marvin Gaye - 1939 - 1944
Nos anos 60 os discos lançados pela Motown eram dos raros que de fato rivalizavam com os dos Beatles (que eram fãs da gravadora, é sempre bom lembrar). O dono da companhia Berry Gordy encontrou uma fórmula infalível ao criar uma música que conseguia atingir igualmente os jovens negros e brancos.
Claro que ter entre os seus contratados Supremes, Stevie Wonder, Temptations, Smokey Robinson, Four Tops e, posteriormente, Michael Jackson e o Jackson 5, ajudava, e muito.
Mas não se nega que ele soube moldá-los ao público branco - os artistas tinham aulas de etiqueta e bons modos por exemplo. Temas polêmicos, como o racismo ou a guerra do Vietnã, também não eram abordados, o que não impedia o elenco do selo de ser obrigado a passar por diversas humilhações, especialmente quando as apresentações aconteciam no sul dos EUA, onde lugares com "entrada proibida a negros" (como visto no filme "Green Book - O Guia" do ano retrasado), eram comuns.
A situação começou a mudar com as lutas pelos direitos civis e a chegada de Norman Whitfield como produtor. Foi ele quem modernizou a Motown, especialmente com suas produções para os Temptations. Mas certamente quem obrigou a Motown a se "olhar no espelho" foi Marvin Gaye. Um dos maiores talentos do século 20, Gaye certamente sofreu a sua cota de preconceito em um país onde o racismo sempre esteve presente. Mas o seu momento de revelação se deu em 1970 quando ele viu um jovem negro ser brutalmente espancado por policias e entendeu que deveria usar de sua posição para chamar a atenção para esse tipo de arbitrariedade.
Nascia assim a canção "What's Going On", que iria desembocar no álbum de mesmo nome. Gordy a princípio não quis lançar a música por achá-la política demais para ser tocada nas rádios. Gaye então ameaçou entrar em greve e acabou vencendo a disputa. Disputa que Gordy certamente gostou de ter perdido, já que tanto o compacto quanto o álbum não só venderam milhões e milhões de cópias, como se tornaram verdadeiros monumentos da música do século 20. O sucesso provou que o público havia amadurecido e queria ouvir sim canções que tratassem de temas mais adultos. Stevie Wonder foi um dos astros do selo que prestou atenção no disco e, novamente para desespero de Gordy, também passou a escrever canções de maior profundidade política e social (e igualmente feito álbuns que entraram para a história da música moderna).
Gaye, infelizmente, teve uma vida curta e confusa que terminou de forma abrupta em 1984 quando ele tinha 44 anos e levou um tiro fatal de seu próprio pai.
Elza Soares - (1930 -)
Aos 90 anos de idade, Elza Soares é a grande dama da música brasileira. Graças aos seus álbuns mais recentes, discos onde ela se mostra à vontade em diversos gêneros e não só no samba, a cantora teve sua carreira renovada, e conquistou todo um novo público sempre pronto a reverenciá-la, por enxergar nela uma artista autêntica e verdadeira, que realmente pode cantar com propriedade sobre os assuntos mais difíceis e incômodos.
Mas, para chegar até aqui, ela teve uma das vidas mais sofridas imagináveis, daquelas que parecem ficção: um casamento aos 11 anos de idade, ela teve um filho com 12 anos e aos 15 perdeu outro para a fome, a dificuldade em ser aceita como cantora, com portas sendo fechadas apenas por causa de sua raça ("A cor da pele é difícil. Pesa muito mais", disse em entrevista) o período de sofrimento quando se casou com Garrincha e viu o jogador perder a batalha para o alcoolismo e outras histórias que podem ser lidas na biografia lançada em 2019 por Zeca Camargo.
Elza nunca abaixou a cabeça e conquistou seu espaço, tornando-se uma das maiores artistas do país, lançando álbuns antológicos e inspirando gerações e gerações de artistas e pessoas com sua música e história de superação de vida.
Daí a ação que pediu por um "apagão" nesta terça-feira ter dado tanto resultado mundo afora. Afinal os problemas raciais não estão limitados aos EUA, longe disso, e essa é uma questão que precisa ser sempre enfrentada e combatida. Nesse especial selecionamos quatro artistas que usaram de sua voz para trazer mais conscientização sobre esse problema e outros igualmente fortes.
Miles Davis - 1926 - 1991
Forte candidato a mais importante músico do século 20, Miles Davis foi responsável por revoluções profundas no jazz e além, "Kind of Blue" de 1959 é tido como um dos melhores, se não o melhor, álbum de jazz da história. Ele ainda eletrificaria o estilo e o aproximaria de gêneros como o rock e o funk.
Apesar de ter nascido em uma família bem estabelecida, Davis sofreu com o racismo e o preconceito lhe deixou marcas profundas - sua persona misteriosa e desconfiada era uma defesa natural contra esses abusos que ele acabou desenvolvendo. Diferentemente de muitos artistas que sofreram com o racismo somente antes da fama, Davis passou por uma de suas maiores humilhações quando já era um dos mais conceituados trompetistas do planeta. Foi em 1959 quando ele levava uma mulher branca até um táxi e um policial lhe mandou "sair andando". Miles não estava disposto a abaixar a cabeça e peitou o oficial.
O músico não só foi ferido pelo como acabou sendo preso, ainda que liberado depois de pagar fiança. Em entrevistas ele disse que esse foi um momento crucial em sua vida, deixando-o mais amargo e cínico em um momento em que ele começava a acreditar que a América estava de fato mudando.
A questão racial influenciaria boa parte de sua produção posterior, especialmente na primeira metade dos anos 70, quando ele gravou discos como o radical "On The Corner", marcados por ritmos pesados e linhas repetitivas fortemente influenciadas pelo funk.
Nina Simone 1933 - 2003
Irriquieta, polêmica e inegavelmente brilhante, Nina Simone foi uma daquelas artistas que nunca se encaixaram em rótulos. Para alguns ela era um cantora de jazz, enquanto outros a enxergavam como uma artista de soul e R&B. O fato é que ela conseguia adaptar qualquer canção à sua voz e dar a ela um toque único, fosse um standard da música americana ou um hit da música pop.
Simone também sofria de bipolaridade, algo que lhe causou muitos problemas, e era uma mulher que não se calava em frente aos problemas dos EUA, especialmente os que envolviam questões raciais - ela contava que, na juventude, foi rejeitada no conceituado Curtis Institute of Music única e exclusivamente por ser negra, já que tinha feito uma audição excelente.
A cantora mostrou sua faceta mais politizada em uma época quando canções sobre o racismo eram raras. "Mississippi Goddam" de 1964 lidava de forma crua e direta com o problema. Simone a escreveu motivada pela explosão criminosa a uma igreja que matou quatro crianças negras e deixou uma quinta cega. O compacto foi boicotado por emissoras de rádios do sul dos EUA e, como esperado, desagradou muita gente. Ao mesmo tempo, ele tornou Nina um símbolo pela luta a favor da igualdade racial.
Marvin Gaye - 1939 - 1944
Nos anos 60 os discos lançados pela Motown eram dos raros que de fato rivalizavam com os dos Beatles (que eram fãs da gravadora, é sempre bom lembrar). O dono da companhia Berry Gordy encontrou uma fórmula infalível ao criar uma música que conseguia atingir igualmente os jovens negros e brancos.
Claro que ter entre os seus contratados Supremes, Stevie Wonder, Temptations, Smokey Robinson, Four Tops e, posteriormente, Michael Jackson e o Jackson 5, ajudava, e muito.
Mas não se nega que ele soube moldá-los ao público branco - os artistas tinham aulas de etiqueta e bons modos por exemplo. Temas polêmicos, como o racismo ou a guerra do Vietnã, também não eram abordados, o que não impedia o elenco do selo de ser obrigado a passar por diversas humilhações, especialmente quando as apresentações aconteciam no sul dos EUA, onde lugares com "entrada proibida a negros" (como visto no filme "Green Book - O Guia" do ano retrasado), eram comuns.
A situação começou a mudar com as lutas pelos direitos civis e a chegada de Norman Whitfield como produtor. Foi ele quem modernizou a Motown, especialmente com suas produções para os Temptations. Mas certamente quem obrigou a Motown a se "olhar no espelho" foi Marvin Gaye. Um dos maiores talentos do século 20, Gaye certamente sofreu a sua cota de preconceito em um país onde o racismo sempre esteve presente. Mas o seu momento de revelação se deu em 1970 quando ele viu um jovem negro ser brutalmente espancado por policias e entendeu que deveria usar de sua posição para chamar a atenção para esse tipo de arbitrariedade.
Nascia assim a canção "What's Going On", que iria desembocar no álbum de mesmo nome. Gordy a princípio não quis lançar a música por achá-la política demais para ser tocada nas rádios. Gaye então ameaçou entrar em greve e acabou vencendo a disputa. Disputa que Gordy certamente gostou de ter perdido, já que tanto o compacto quanto o álbum não só venderam milhões e milhões de cópias, como se tornaram verdadeiros monumentos da música do século 20. O sucesso provou que o público havia amadurecido e queria ouvir sim canções que tratassem de temas mais adultos. Stevie Wonder foi um dos astros do selo que prestou atenção no disco e, novamente para desespero de Gordy, também passou a escrever canções de maior profundidade política e social (e igualmente feito álbuns que entraram para a história da música moderna).
Gaye, infelizmente, teve uma vida curta e confusa que terminou de forma abrupta em 1984 quando ele tinha 44 anos e levou um tiro fatal de seu próprio pai.
Elza Soares - (1930 -)
Aos 90 anos de idade, Elza Soares é a grande dama da música brasileira. Graças aos seus álbuns mais recentes, discos onde ela se mostra à vontade em diversos gêneros e não só no samba, a cantora teve sua carreira renovada, e conquistou todo um novo público sempre pronto a reverenciá-la, por enxergar nela uma artista autêntica e verdadeira, que realmente pode cantar com propriedade sobre os assuntos mais difíceis e incômodos.
Mas, para chegar até aqui, ela teve uma das vidas mais sofridas imagináveis, daquelas que parecem ficção: um casamento aos 11 anos de idade, ela teve um filho com 12 anos e aos 15 perdeu outro para a fome, a dificuldade em ser aceita como cantora, com portas sendo fechadas apenas por causa de sua raça ("A cor da pele é difícil. Pesa muito mais", disse em entrevista) o período de sofrimento quando se casou com Garrincha e viu o jogador perder a batalha para o alcoolismo e outras histórias que podem ser lidas na biografia lançada em 2019 por Zeca Camargo.
Elza nunca abaixou a cabeça e conquistou seu espaço, tornando-se uma das maiores artistas do país, lançando álbuns antológicos e inspirando gerações e gerações de artistas e pessoas com sua música e história de superação de vida.